Antonio Delfim Netto
Valor Econômico - 31/01/2012
Há algumas semanas tive a oportunidade de afirmar nesta coluna que
muitos economistas altamente qualificados manifestaram, no início dos
anos 90 do século passado, dúvidas a respeito da possibilidade de uma
moeda única poder funcionar na Comunidade Econômica Europeia.
Na antevéspera do lançamento do euro, 150 dos mais renomados e bem
apetrechados economistas alemães assinaram um "manifesto" em que
condenavam a precipitação de instituir o euro sem antes ter construído
uma "área monetária ótima", acompanhada de uma forte coordenação das
políticas fiscais entre os países e a construção de um Banco Central
autônomo, que pudesse, de fato, exercer a sua função de "emprestador de
última instância" nos momentos de crise. Essas, seguramente, pela
própria natureza da economia de mercado, viriam a existir. Recebi um
e-mail de um gentil leitor perguntando se poderia dar exemplos além dos
economistas alemães.
Vou tentar atendê-lo revelando as opiniões de dois brilhantes
monetaristas que em 1963 publicaram uma das obras-primas da literatura
econômica do século XX, Milton Friedman e Anna Schwartz ("A Monetary
History of the United States: 1867-1960"). Em entrevistas
independentes, dadas, respectivamente, em junho de 1992 e setembro de
1993 para a magnífica revista do Federal Reserve Bank of Minneapolis,
eles falaram sobre o assunto.
Dificuldade do euro está no desequilíbrio das taxas
À pergunta (junho de 1992): "Qual é a sua opinião sobre o projeto de
uma moeda única na eurolândia?", Friedman respondeu: "Não creio que
funcione na minha geração. Talvez na sua, mas não tenho qualquer
certeza"... e acrescentou: "Seria altamente desejável que a Europa
tivesse uma única moeda, da mesma forma que temos nos EUA. Mas para
tê-la você precisa de uma área onde as pessoas e os bens movam-se
livremente e na qual exista suficiente homogeneidade de interesses,
para que não haja estresse político criado pelo desenvolvimento
desigual das diferentes partes da área. Para ilustrar. Temos hoje
(1992) uma região dos EUA ("Northeast in general"), em grave
dificuldade. Se ela fosse um país separado dos EUA, com outra língua e
com um suposto governo nacional próprio, seria fortemente tentada a
realizar uma desvalorização cambial, o que não pode fazer... Além do
mais, a eurolândia deveria ter um verdadeiro Banco Central com toda
autoridade, o que implica fechar a Banque de France, a Banca d"Italia e
o Deutsche Bundesbank... Os planos pretendem isso, mas é claro que
entre pretender e fazer há uma imensa distância"...
No mesmo diapasão, temos Anna Schwartz. À pergunta (setembro de
1993) "Tem a história alguma lição a dar aos planejadores da união
monetária da Europa?", ela respondeu: "Os planejadores da União
Europeia deveriam estudar com muito cuidado as razões pelas quais o
"gold standard"-, anterior à Primeira Guerra Mundial, foi um regime
bem-sucedido; por que a Conferência Econômica de Gênova, de 1922, e a
Conferência Econômica de Londres, de 1933, falharam; por que o "gold
standard" entre as duas guerras entrou em colapso; por que o acordo de
Bretton Woods não sobreviveu à inflação dos EUA; por que o Exchange
Rates Mechanism (firmado ente os países europeus para coordenar suas
taxas de câmbio) está nas "cordas" desde 1992. A lição do passado é que
um regime monetário só é bem-sucedido quando países com os mesmos
objetivos sofrem os mesmos choques. Os países-membros devem estar
dispostos a ceder sua soberania a uma autoridade monetária
transnacional. Num mundo de incertezas e choques não antecipados, os
países têm prioridades nacionais, que não podem prescindir do uso de
políticas monetárias domésticas e, portanto, resistem a assumir
compromisso com um único objetivo: a estabilidade dos preços". E
termina afirmando que "a história dos regimes monetários internacionais
sugere que a união monetária europeia é a non starter"!
Vemos que Friedman e Schwartz (com alguma teoria e muita história)
colocam o dedo na real dificuldade do euro: o desequilíbrio das taxas
de câmbio nominalmente fixadas na moeda única, mas "virtualmente"
flutuantes dentro da zona do euro, pelo dinamismo diferente da economia
de cada um de seus membros.
Esse problema só desaparece quando temos uma federação de fato, como
é o caso dos EUA, do Brasil e da Alemanha, onde um poder central
redistribui para as regiões, que têm um déficit "virtual" em contas
correntes, parte dos recursos tributários recolhidos nas outras, sem
que aquelas tenham de reduzir seu crescimento ou endividar-se.
Nada disso é novidade. Aliás, foram as dificuldades cambiais dentro
do "gold standard" que levaram à tentativa de mimetizar uma
desvalorização cambial sem, de fato realizá-la. Um exemplo é o esquema
primitivo de Keynes nos anos 30: uma tarifa "ad-valorem" sobre todas as
importações e o uso dos seus recursos para subsidiar as exportações,
que recebeu o nome de "desvalorização fiscal".
Quem tiver disposição para ver os "progressos" dessa ideia usando o
modelo novo keynesiano de Equilíbrio Dinâmico Geral Estocástico (DSGE),
não deve perder o artigo "Fiscal Devaluation", (NBER - Working Paper
17.662, de dezembro/ 2011), onde outros instrumentos para tentar
realizá-la (aumento de impostos indiretos e redução das contribuições
sociais) são sugeridos. Fé, coragem e bom apetite!
Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da
Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras
E-mail contatodelfimnetto@terra.com.br
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